domingo, 10 de maio de 2009

O capitalismo e a gripe suína

Agradecimentos a M.G. pelo envio da notícia (;
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O capitalismo e a gripe suína
[Mike Davis]
Em 2006, Mike Davis, lançou o livro O Monstro bate à nossa porta (Boitempo) alertando para a ameaça de uma pandemia global de gripe aviária. Agora, ele explica como o agronegócio globalizado criou as condições para um assustador surto de gripe suína no México.
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Multidões de turistas voltaram de Cancun este ano trazendo um souvenir invisível mas sinistro. Trata-se do vírus da gripe suína mexicana, uma mutação genética provavelmente surgida das fezes e lama de chiqueiros industriais e que pode representar uma ameaça à saúde mundial. Focos iniciais da doença encontrados em toda a América do Norte revelam uma taxa de infecção que já viaja a uma velocidade maior do que a última pandemia oficial, a gripe de Hong Kong, de 1968.
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Roubando a cena de nosso maior assassino oficial – o vigoroso mutante H5N1, conhecido como gripe aviária –, este vírus é uma ameaça de magnitude desconhecida. Certamente, parece muito menos letal do que a SARS (em português, Síndrome Respiratória Aguda Grave) de 2003, mas pode ser mais duradouro do que esta e menos inclinado a voltar a seu esconderijo secreto.
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Dado o seu caráter domesticado, a gripe sazonal mata mais de 1 milhão de pessoas anualmente. Assim, até mesmo um modesto aumento de virulência, especialmente quando combinada com alta incidência, poderia produzir uma matança equivalente à de uma grande guerra.
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Entretanto, uma de suas primeiras vítimas foi a confiança cega de especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que pandemias podem ser contidas pela rapidez das respostas de burocratas da saúde, independente da qualidade da saúde pública local.
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Desde as primeiras mortes por H5N1 em Hong Kong, em 1997, a OMS, com o apoio da maioria dos serviços nacionais de saúde, tem promovido uma estratégia focada na identificação e isolamento de uma cepa pandêmica dentro do seu raio de ataque local, seguido por um pesado tratamento da população com medicamentos antivirais e (se disponíveis) vacinas.
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Uma multidão de céticos tem corretamente contestado a eficácia dessa abordagem antiviral, salientando que, hoje em dia, micróbios podem voar ao redor do mundo (literalmente, no caso da gripe aviária) mais rápido do que a OMS ou funcionários locais podem reagir ao primeiro surto. Outro ponto vulnerável é a precária, e muitas vezes inexistente, vigilância em relação aos perigos causados pela contaminação entre humanos e animais.
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Porém, a mitologia de que foi uma intervenção pesada e preventiva (além de barata) que resolveu a guerra contra a gripe aviária foi de grande valor para a causa dos países ricos. Assim, Estados Unidos e Grã-Bretanha, por exemplo, preferem investir em suas próprias trincheiras biológicas, em vez de aumentarem a ajuda para o combate a epidemias que se espalham sem levar em conta as fronteiras. Além disso, a indústria farmacêutica tem combatido as iniciativas do Terceiro Mundo no sentido de fabricar em laboratórios públicos versões genéricas mais baratas de antivirais como Tamiflu, da Roche.
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De qualquer modo, a gripe suína revela que a Organização Mundial de Saúde – sem novos investimentos maciços em vigilância, científica e infra-estrutura reguladora, atendimento básico de saúde pública em nível mundial e maior acesso a medicamentos eficientes – pode representar o mesmo tipo de risco que o banco Lehman Brothers e a seguradora AIG.
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Não é que o sistema de alerta contra pandemias tenha falhado. Ele simplesmente não existe, mesmo na América do Norte e na União Européia.
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Talvez não seja surpreendente que o México não tenha tido a capacidade e vontade política para controlar a doença e seus impactos na saúde pública. Mas, a situação não é muito melhor do lado norte de sua fronteira, onde vigilância é feita por um Estado fracassado, sob o império de interesses empresariais que tratam a saúde pública com o mesmo desprezo com que lidam com seus trabalhadores e animais.
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Da mesma forma, uma década de avisos urgentes feitos por cientistas da área não foi capaz de assegurar a transferência da sofisticada tecnologia viral para os países mais ameaçados por uma provável pandemia. O México tem especialistas em patologias mundialmente famosos, mas eles tinham que enviar amostras para um laboratório em Winnipeg (que tem menos de 3% da população da Cidade do México), para identificar a estirpe do genoma da gripe. Quase uma semana foi perdida como conseqüência disso.
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Mas ninguém mostrou-se menos alerta do que os responsáveis pelo controle de patologias em Atlanta, Estados Unidos. Segundo o Washington Post, o centro de controle de doenças local só ficou sabendo sobre o surto 6 dias após o governo mexicano ter começado a impor medidas de emergência em seu território. Na verdade, o jornal afirma que os "funcionários estadunidenses da saúde pública ainda ignoravam o que estava acontecendo no México duas semanas após o surto ter sido reconhecido."
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Não há desculpas aceitáveis. Na verdade, o maior paradoxo desta gripe suína é que, embora tenha acontecido de forma totalmente inesperada, ela foi rigorosamente previsível.
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Seis anos atrás, a revista Science dedicou um grande espaço a um artigo de Bernice Wuethrich que apontava evidências de que "após anos de estabilidade, o vírus norte-americano da gripe suína vem sofrendo uma evolução rápida".
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Desde a sua identificação no início dos anos 1930, a gripe suína H1N1 tinha variado apenas ligeiramente a partir de seu genoma original. Então, em 1998, liberou todos os seus demônios. Uma estirpe altamente patogênica dizimou porcos em uma fábrica-fazenda na Carolina do Norte, e logo, novas versões virulentas começaram a aparecer quase anualmente, incluindo uma variante da cepa H1N1 que continha o gene do H3N2 (tipo de gripe que circula entre os seres humanos).
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Os pesquisadores entrevistaram Wuethrich. Preocupada que um desses híbridos pudessem tornar-se uma gripe humana (acredita-se que as pandemias de 1957 e 1968 tenham se originado a partir da mistura de vírus de aves e de humanos dentro de suínos), ela defendeu a criação de um sistema público de vigilância para a gripe suína. Este alerta, claro, passou despercebido em Washington que preferia jogar fora bilhões no combate a fantasiosas ameaças de bioterrorismo a enfrentar perigos bem mais óbvios.
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Mas o que causou esta aceleração da evolução da gripe suína? Provavelmente a mesma coisa que favoreceu a reprodução da gripe aviária.
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Há muito tempo, os virologistas consideram que o sistema agrícola intensivo do sul da China – uma enorme cadeia produtiva de arroz, peixe, suínos e aves domésticas e selvagens – é o principal motor da mutação aviária: tanto a sazonal "flutuação" como a episódica "mutação". (Mais raramente, pode ocorrer um salto direto a partir de aves para suínos e/ou seres humanos, como aconteceu com H5N1 em 1997.)
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Mas as empresas de industrialização da produção animal têm desafiado monopólio da China em termos de evolução aviária. Como muitas pessoas têm apontado, a criação animal nas últimas décadas tem se transformado em algo que mais parece a indústria petroquímica do que a tradicional fazenda familiar retratada em livros didáticos.
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Em 1965, por exemplo, havia 53 milhões de porcos em mais de 1 milhão de fazendas americanas. Hoje, a criação de 65 milhões de suínos está concentrada em 65 mil instalações - metade com mais de 5 mil animais.
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Essencialmente, houve uma transição entre os velhos chiqueiros para enormes criadouros produzindo vasta quantidade de excrementos, com dezenas e até centenas de milhares de animais com sistemas imunes enfraquecidos, sufocando no calor e no estrume, enquanto trocam doenças entre si a uma velocidade absurda.
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A Smithfield Foods, por exemplo, tem duas filiais nos Estados Unidos que criam anualmente mais de 1 milhão de suínos cada, gerando centenas de substâncias tóxicas em lagoas cheias de merda. Qualquer um que presenciar esse tipo de produção pode compreender intuitivamente o quão profundamente o agronegócio tem mexido com as leis da natureza.
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No ano passado, uma comissão da respeitada organização Pew Research Center publicou um relatório sobre "a exploração industrial da produção animal", que destaca os graves perigos representados pela "contínua ciclagem de vírus”. O documento diz que esse tipo de atividade “em grandes rebanhos [vai] aumentar as chances de geração de novos vírus, que poderiam resultar em sua transmissão mais eficiente de humanos para humanos”.
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A Comissão também advertiu que o uso antibiótico abusivo em criações empresariais de porcos estava provocando o surgimento de todo tipo de infecções resistentes (como a causada por um protozoário que já matou mais de 1 bilhão de peixes nos estuários da Carolina do Norte e provocou doenças em dezenas de pescadores).
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Qualquer melhoria neste novo ambiente patogênico, no entanto, teria que se confrontar com o monstruoso poder dos conglomerados empresariais como a Smithfield Foods (carne de porco e de vaca) e a Tyson (frangos). A comissão da Pew relatou sistemática obstrução de suas investigações pelas empresas, incluindo flagrantes ameaças de bloquear financiamento para os criadores que colaborassem com as investigações.
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Além disso, trata-se de uma indústria altamente globalizada, com grande peso político internacional. A Bangkok Charoen Pokphand, empresa gigante da criação de frangos, impediu investigações sobre o seu papel na propagação da gripe aviária em todo Sudeste Asiático. Do mesmo modo, é provável que as investigações sobre as responsabilidades pelo surto da gripe suína não consigam romper o muro de pedra que protege os interesses da indústria de carne suína.
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Isto não quer dizer que pistas do crime nunca serão encontradas: já há rumores na imprensa mexicana sobre um epicentro da gripe envolvendo uma enorme filial da Smithfield no estado mexicano de Veracruz.
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Mas o mais importante (sobretudo tendo em conta a continuação ameaça do H5N1) é alertar para os perigos em um contexto maior: a estratégia de combate a pandemias da Organização Mundial de Saúde falhou, vivemos um quadro de piora da saúde pública mundial, remédios que salvam vidas estão sob controle da grande indústria farmacêutica e chegamos a uma catastrófica situação mundial causada por uma produção de alimentos industrializada e ecologicamente descontrolada.
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Tradução: Sérgio Domingues
http://www.revolutas.net/index.php?INTEGRA=1112
http://socialistworker.org/2009/04/27/capitalism-and-the-flu

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