sábado, 15 de dezembro de 2007

NO PAÍS QUE APLAUDIU "TROPA DE ELITE" A MATADEIRA CEIFA VIDAS COM O CONSENTIMENTO DE TODOS

Zé Arbex é um jornalista que vale a pena ser lido. Mensalmente escreve na revista Caros Amigos e as suas atividades vão além da caneta e do papel. Esta matéria denúncia a máquina de produzir mortes que vem sendo operada pelos militares nas favelas do Rio de Janeiro, com o apoio, de Sérgio Cabral que recentemente deu uma derrapada na polidez e soltou uma de matar mico, coisas essas que em geral só surgem em situações tensas. Disse o "senhor governador" na ocasião, coisa de meses atrás que as moradoras de favelas produzem em massa criminosos. Reeditou o clássico: "Todo pobre é bandido". É o progressio brasileiro, meus caros. Absurdo despropositado que gerou um grande burburinho, na época, e deixou o "senhor governador" na saia justa.
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Um Carandiru por mês
por José Arbex Jr. 694 mortos em seis meses, entre janeiro e julho de 2007: a cifra enche de orgulho o governador do Estado do Rio de Janeiro, que parece acreditar ser esse o caminho para acabar com o império do narcotráfico na capital fluminense. Estamos, aqui, falando de um massacre do Carandiru por mês, todos os meses, ou de quatro mortes por dia – uma a cada seis horas. É absolutamente inacreditável. Difícil saber o que é pior: a leveza com que Sérgio Cabral defende o reinado do terror ou a quase total indiferença, quando não manifestações de apoio explícito com que suas declarações são acolhidas pela assim chamada sociedade civil. O governador lamenta a morte de inocentes, assim como José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio, que afirma: “Não queremos que aconteçam incidentes dolorosos envolvendo crianças e pessoas de bem. Mas precisamos desarmar o tráfico com urgência.” (Folha de S. Paulo, 19.out) Certo. Faltou explicar como, exatamente, a polícia sabe quem é “do bem” e quem é “do mal”. Não raro, as versões contadas pelas autoridades sobre as mortes (invariavelmente, explicadas como reação dos policiais aos ataques dos bandidos) diferem daqueles oferecidas pelos moradores das favelas - isto é, quando eles não se sentem tão aterrorizados que consigam oferecer alguma versão.
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Que mandado é esse?
Por mais que os representantes do governo e da PM neguem, do seu ponto de vista todo morador de favela é, em princípio, suspeito, e deve ser tratado como tal. É este, precisamente, o significado do “mandado de busca coletivo”, um procedimento completamente inconstitucional e irregular, autorizado por juízes que, obviamente, compartilham da mesma percepção e cujo uso já se tornou banal no Rio e em São Paulo.
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Esse procedimento permite que os policiais tomem de assalto as residências dos favelados e transformem o morro inteiro num selvagem campo de batalha.
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Caro leitor: você já parou um segundo para pensar o que significa um mandado de busca coletivo? Significa que a polícia pode entrar em qualquer casa, a qualquer hora, revistar todos os aposentos, interrogar todos os moradores, apreender quaisquer objetos considerados “suspeitos”, por uma única razão: porque a casa situa-se numa área que se tornou alvo de uma ação policial. O mandado de busca coletivo suspende todas as garantias constitucionais, ignora completamente os direitos individuais e as normas mais básicas do convívio civilizado. É uma humilhação terrível, imposta pelo Estado aos cidadãos “do bem”, sitiados em seu próprio lar.
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Pergunta: quais são as chances de que algum dia algum juiz autorize um mandado de busca coletivo, digamos, nos jardins de São Paulo, ou no Leblon carioca?
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Chegamos, aqui, ao coração do problema. O governador só pode se referir com tanta leveza e orgulho aos seus Carandirus mensais porque as vítimas não existem aos olhos da classe média. São os negros e pobres das favelas, um amontoado de carne cuja falta ninguém sentirá no dia seguinte – exceto, é claro, os seus amigos e familiares que são tão negros e pobres quanto, e por isso igualmente não contam.
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Cinismo e silêncio
Questionado por jornalistas sobre a óbvia diferença de atitude da polícia quando suas operações são realizadas em bairros “brancos” do Rio, Beltrame nega: “"As diferenças na execução das operações existem em razão das características de cada morro ou favela e do modo de atuação das quadrilhas.” Claro, quem pode duvidar disso? E explica, também, que as mortes que acontecem hoje evitarão um número ainda maior no futuro – mais ou menos como a Casa Branca explicou que as bombas sobre Hiroshima e Nagasáqui foram uma providência humanitária (sic) para abreviar a guerra. OK.
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Se o cinismo e a brutalidade dos representantes do Estado causam náuseas, não menos asqueroso é o silêncio cúmplice da classe média. Reside aí um perigo imenso: o da conivência com procedimentos de limpeza étnica, em nome do combate ao crime e ao “mal”. Já vimos esse filme antes e sabemos para onde pode conduzir.
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José Arbex Jr. é jornalista

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