quinta-feira, 1 de maio de 2008

Sérgio

“Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com medo de que o silêncio já significasse ruptura, disse ao recém namorado: - Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?” Clarice Lispector
.
Fui sentir o hálito das massas neste 1º de maio de 2008, mais que isso fui compartilhar projetos. Com isso crio vínculos e consigo o prazer de dividir com pessoas queridas um mesmo espaço dentro deste tempo que tendemos a acreditar corre mais do que somos capazes de dar conta.
.
Enfim, estamos gravando um documentário sobre a luta pela moradia dentro do espaço urbano. Fomos para o ato com este intuito, ou melhor, mais que isso. Conhecer pessoas e trocar experiências de vida.
.
Mas este texto nem de perto vai chegar a tratar sobre os movimentos de ocupação que atuam na região metropolitana de São Paulo. Num outro artigo trabalharei isto. Aqui vou me reter a dar voz, a trazer a tona os marginalizados da história num outro específico caso. Mas para isso terei de reconstruir o cenário dentro do qual estava inserido, tentativa que por si só já coloca a pertinência de um alerta: Embora válido, o relato, o qual irei aqui encaminhar, reduz a dimensão da experiência vivida. Mas mais do que apontar miudezas metodológicas, o que pretendo mesmo é estimular, neste sentido, a ação. Sentir o sabor da vida, ao invés do contentamento de um relato.
.
FALA
Após o pontual atraso dos irmãos com os quais divido projetos, ficamos um tempo a trocar em miúdos uma e outra informação sobre a nossa ação, projeto que estava na pauta do dia e que me deixara muito ansioso. Não por muito tempo nos retemos ali e tão logo rolamos contra a gravidade pelas escadas da Sé até o encontro com uma multidão, ainda em reunião, para as festividades do 1º de maio.
.
Em frente a catedral estava um carro de som. Ao longe, avistamos bonecos gigantes, irmãos do carnaval de Olinda e que estavam a dar um ar de graça e descontração ao ato. Soaram batuques. Corpos dançantes arrolaram até um palco, montado a frente do carro de som e usado há pouco para uma espécie de jogral, onde fora rememorada ações populares do ano de 1968.
.
Enfim, fiquei de canto observando todo aquele movimento. Bandeiras agitando com o vento, um cartaz andarilhando entre a multidão buscando tornar parte da consciência dos presentes, os sem-terras assassinados no campo. Noutro canto tinha um nego desatando o nó que amarrava o material da panfletagem. Em meio a isso tudo tava lá eu, ainda curtindo a recente guarda conquistada das bolsas e equipamentos, as quais a partir de então teria de cuidar com muito carinho. Enquanto isso os camaradas do áudio-visual estavam a todas capturando uma imagem aqui e outra acolá.
.
E eu lá de canto, após todas as apresentações musicais, senti passar pela audição as falas entusiasmadas daqueles que se apoderavam dos microfones. Nesta hora passam diversas coisas pela cabeça. Lembrei da minha menina e de milhares de coisas. Fantasiei e tomei o gosto por uns tantos insultos. Estava incomodado. Queria uma fuga. Por vezes, é verdade eu tornava a pousar na Sé e era impossível não, com pérolas do tipo: “É preciso recuperar o sentimento de classe da luta classista da classe trabalhadora”. Enfim, fui ficando de canto até pousar na Sé e não querer mais alçar vôo.
.
No carro de som: palavras de ordem. Críticas ao desgoverno Lula, ao que parece único desgoverno que incomoda as “esquerdas políticas”, dado que não se ouve criticas ao Serra ou mesmo ao Kassab; a essas somavam-se as críticas ao imperialismo americano, como se todo o mal do país e do mundo decorresse da atividade deste, dado que a crítica a burguesia local aparecia em poucas falas e nunca na daqueles que desenvolviam tal discurso; Críticas ao sindicalismo brasileiro e cometeria redundância se o definisse como pelego. Neste sentido, preciso, pois só um estúpido discordaria que o papel da grande maioria dos sindicatos hoje no Brasil, reduziu-se a sortear prêmios e contratar artistas ao custo de obesos cachês para a promoção do espetáculo.
.
Enfim, no dia do trabalhador um episódio merece destaque. Surgira do conflito e despertou a minha atenção. Pousei no concreto e dali não arredei.
.
SÉRGIO
Sérgio é um nome. Os nomes são dados à pessoas por outras pessoas que tem nomes que lhes foram dados por outras pessoas. Assim, são dados para serem usados pelo mesmo e por outras pessoas. Mais do que qualquer coisa um nome é uma espécie de estratégia para se fugir do anonimato. Em outras palavras, ele está imbuído de um dado existencial. Assim, ao mesmo tempo que reduz a dimensão da pessoa permite-nos acessá-la, ou melhor, torná-la uma referência na consciência, na memória. Se não o tem está condenada, a pessoa, a indigência. Tomemos como exemplo as generalizações condensadas em torno de um nome, por exemplo, mendigo. Um mendigo, justamente por ser uma generalização, não é, pois não existe como sujeito. Sem um nome é impossível individualiza-lo. Logo, sem um nome, sequer é dado, ao mesmo, a possibilidade de existir na memória dos outros como sujeito individualizado.
.
Mas voltemos ao Sérgio. Evidentemente, o seu nome, perguntei após a evidência do conflito. O dia do trabalho que só falava do trabalhador e ao trabalhador excluíra Sérgio até no discurso e isto o incomodara. Um excluído, um marginalizado no mundo que não conseguira sequer um lugar na fala dos tagarelas do carro de som, também não era o alvo daquele discurso. Num dado momento da nossa conversa disse, Sérgio: “Quando acontece uma festa aqui pode ver! Os moradores de rua ficam de canto, porque se chegam perto de uma moça ela vai achar que eu vou roubar ela”. Esta é apenas uma evidência da sua marginalidade. No correr do texto notarão outras tantas.
.
Antes delas um último apontamento. A necessidade de existir deste sujeito era tão urgente que ele renunciou a individualidade de seu nome, bastava-lhe ser reconhecido pela generalidade, que eu senti surgir da sua boca quase como classe: morador de rua.
.
TÔ FALANDO
A sua atitude fora de revolta e me chamou a atenção: “-Fala de nós moradores de rua”. Ao contrário do que se possa imaginar, Sérgio jamais pode ser considerado um acomodado. A sua revolta quebra este argumento. No mais pediu por trabalho, mas chiou: “Quem dá trabalho pra morador de rua?”. Nosso ilustre sujeito há muito já vinha falando. É certo que fala todo dia. Ali no ato de 1º de maio não sentira a sua voz repercutir em ninguém. Tampouco as esquerdas políticas estão sensíveis a sua situação. O 1º de maio é específico, tal como parecem entender as mesmas forças políticas, logo não cabe morador de rua nem no discurso das mesmas. De repente se tivéssemos um dia do Morador de Rua, quem sabe Sérgio fosse lembrado em algum discurso político. Decerto o autismo induzido pela cultura social a Sérgio tinha paralelo em situação antes do ato. Mas ele falava e tenho certeza que as pessoas, grupos e partidos ouviam-no e ouvem-no para, no entanto, para desprezar e ignorar. Descartam a sua existência, pois sua voz não ecoa. Ninguém lhe dera atenção, situação imagino corriqueira, logo familiar ao mesmo e combustível permanente para sua revolta.
.
Impossível foi não me voltar em sua direção em concordância com a sua atitude, afinal, estava achando aquele carro fazendo um som uma grande bobagem. O prazer da existência, mesmo momentânea, na duração exata de uma conversa, dava nos olhos. Era um descaramento a existência de Sérgio.
.
Nos entendemos. Transitamos por diversos assuntos. Impressionante o tamanho da sua consciência. Conseqüência da maior universidade que existe: “a rua” como bem disse em sua conversa. Não lhe presta reverências, é claro, pois à sua casa que não é sua, não é bem vindo e quando perguntei pelo seu quarto apontou-me a Praça da Sé. Falou-me da humilhação e de outras tantas que se somam a maior, que é não ter teto e estar marginalizado, excluído de qualquer política pública e também pela sociedade, como bem apontou.
.
“SE VOCÊ NÃO BEBE, NÃO DORME!”
Sérgio como qualquer ser humano possui sentidos e tem sentimentos. Mais que isso, possui vida, mas a marginalidade é tal que me falara dos amigos que o frio sugou o calor da vida: “Se você não bebe, não dorme”, disse. Por vezes quando dorme, não acorda, ao que parece. Quando o sono não é eterno, não raro, é interrompido pelos funcionários da limpeza. Estes com os seus caminhões pipas durante a noite lavam a Praça e mudam a condição daqueles que por ali vão ficando. Sérgio fora e é, como me dissera, testemunha do mais variado repertório de humilhações que o governo e a sociedade pode perpetrar a outro ser humano. Quando não, fora também vítima das inúmeras vezes em que acordou com o corpo molhado pelos funcionários da limpeza: “Eles nos chamam de lixo”.
.
A marginalidade é tal, que a covardia da violência policial, respaldada pela cultura da sociedade, autoriza a surra cotidiana aos moradores de rua sem que isso, no entanto, venha a ocasionar algum comedimento ou repreensão moral. Não se estendeu neste ponto. Por qual motivo não faço idéia, mas fora efusivo quando disse que isso acontecia com muita freqüência: “Vixê, isso é direto!”. Polícia que pra ser fiel ao que me disse corre atrás de trabalhador e nunca de bandido. Em se tratando de carroças já lhe levaram quatro.
.
“Querem acabar com o morador de rua!” – respondeu-me após lhe perguntar sobre a má digestão do desgoverno Kassab (PFL/DEM). Provoquei: “Porque o senhor acha que tiraram os toldos por conta do projeto ‘Cidade Limpa’ do Kassab”. Sérgio não pensou duas vezes: “Não querem que a gente durma embaixo”.
.
“QUEREM ACABAR COM O MORADOR DE RUA!”
Antes de apontar outro assunto vamos nos reter por um tempo na eliminação da existência do morador de rua. Há um tempo o “incômodo” atribuído até então pelas autoritárias autoridades e pela sociedade passou a receber tratamento diferenciado por parte do poder ditatorial e higienista desta má digestão Kassab (PFL/DEM), que se auto-intitula público, mas deveria sim é ser processado pela propaganda enganosa. Quero colocar destaque nas palavras de Sérgio: “Querem acabar com o morador de rua!”. Acabar com o morador de rua não significa que a atual gestão política venha a dar-lhe o respaldo necessário para que mude de condição. Sérgio é antes de tudo um marginalizado. Acabar com o morador de rua na linguagem do poder privado, que se auto-intitula público, é exterminá-lo fisicamente. Apagar a sua existência. Não se trata somente da Cidade Limpa, ou das “Revitalizações”, de criar bancos anti-mendigos com acentos individualizados, ou obrigar o comércio a retirar os toldos para impedir que moradores de rua venham ali a estender o seu papelão para uma noite de sono, mas de sobretudo, perseguir, violentar e assassinar. Há pouco tempo respingou como nota de rodapé na mídia o exercício de grupos de execução no centro da cidade. Por fim, mais do que o meu salientar a este respeito, fora o peso que Sérgio colocara no “acabar com o morador de rua”.
.
Ainda quando estava recente a sua revolta mediante a exclusão, no discurso do 1º de maio, do morador de rua, bem no início de nossa conversa, já depois de tê-lo ouvido bastante sobre a sua condição de exclusão/marginalidade, apontou-me uma moradora de rua, já senhora: “Ela queria estar na casa quentinha, mas não. Ela tá ali porque a família jogou ela fora”. E a família jogou fora porque aquela senhora moradora de rua ali sentada na Sé é descartável. A sociedade do copo de plástico e da garrafa pet também descarta gente com o mesmo desdenho que se joga um papel pela janela de um auto em movimento.
.
Esta cultura maldita que contamina a todos os segmentos da sociedade consiste em desprezar o outro como ser humano. Assim, desconsiderado em sua humanidade ele é descartado. Não fará parte da consciência daquele que descarta, portanto não participara o mesmo dos seus planos. O ser humano, dentro desta cultura, tem um prazo de validade. Este tão logo excedido perde o valor de uso. Por fim, é descartado. Vira “lixo” na boca dos funcionários da limpeza e na mentalidade da sociedade. Sérgio, ao se definir, diz-nos que “o pobre é um excluído”.
.
FALOU!
Sérgio é antes de tudo um marginalizado e ser marginalizado é não ser. Na Sé, à margem dentro de sua própria casa, era periférica a sua posição. O “espaço público” que lhe serve de moradia, não é seu. Estava longe do coração do espetáculo do 1º de maio, dia do trabalhador. À margem dentro do seu quarto alugado. Estava ausente no discurso das esquerdas até mesmo na categoria substantiva e generalizante: morador de rua. Sérgio um descartado pela sociedade de indivíduos é ignorado pela mesma. Tem um nome, mas não o tem na medida em que é só sua a consciência do mesmo e não dão a mínima os outros para agregarem as vossas consciências o seu nome. Por conseguinte, lhe é furtada a possibilidade de existência. Sérgio está retido em si. Não existe. Só: Re-xiste. Pois decerto teu espírito sentiu, em dado momento de sua vida, o que é existir. Talvez antes do crucial episódio que o pôs há 10 anos distante de sua casa e esposa. Agora com 43 anos, teus anticorpos lutam contra o câncer da cultura social. Sérgio re-xiste e tem fome.
.
Pediu trabalho, mas reconheceu que ninguém dá trabalho pra quem não é. E para ser, segundo as convenções sociais, é preciso ter. Sérgio é um despossuído. Despossuído de teto. “Quero casa e emprego” foi a ordem em que colocou as coisas. Reconhece a seu modo o impasse, o paradoxo no qual está metido. A consciência torna penosa sua vida, mas quem sabe não seja a sua arma para fugir da armadilha. Pediu teto, um lugar qualquer, com quatro paredes e uma porta onde possa passar o trinco e barrar do lado de fora. Do lado de fora. Sérgio que entrar para o lado de dentro. Tudo para se resguardar do caminhão da limpeza, da violência policial, dos grupos de extermínio (que podem ser policiais), da frieza do coração das pessoas (o qual reconhece como frio mais sombrio), o sopro do vento e o molhado da chuva. O seu pedido é mínimo, mas as convenções sociais não permitem atendê-lo, pois só é permitido humilhar.
.
Sérgio quer entrar para o lado de dentro. Deixar a marginalidade. Ter um teto para ser, existir. Enquanto isso pretende re-xistir, mas, para tanto, é necessário que o lembrem nos discursos, nas políticas públicas. É necessário recriar a cultura. É necessário que seja parte da memória/consciência, que o ouçam, que lhe falem e ajudem. É necessário não ignorar o óbvio.
.
Nossa conversa cessou com um aperto de mão. As suas cheias dos calos que o trabalho duro de catador lhe veste. Quem sabe um dia o encontre na Sé. Hoje o dia está muito frio e a chuva não deu trégua. Fico imaginando quantas doses foram necessárias para se aquecer, para dormir e se entorpecer deste mundo cretino. Foi-se pra outro canto com a sua carroça, teu bem e ganha pão até a próxima apreensão dos nazis da policia metropolitana, mas não sem antes um camarada do MTST, Eugenio Lopes, aproximar-se e dizer para Sérgio: “E então amigo, falou? Tá mais calmo!”.
.
texto: Alek Sander de Carvalho
.
Creative Commons License
Carmesin is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil License.

Nenhum comentário: