sexta-feira, 28 de março de 2008

OLIMPÍADA E TLATELOLCO

OLÍMPIADA E TIBET
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O Palco é o México, sede das Olímpiadas no ano de 1968. A cabeça pensante sintonizada com o presente e as mãos que o concretizam em obras literárias, poesias e ensaios, são as de Octavio Paz, nas letras um gigante.
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Constata o autor, em 68, um México ávido por exibir as suas pavonices modernas para o mundo. Para tanto, a organização dos Jogos Olímpicos daquele ano foram significados como uma espécie de oportunidade privilegiada, para que, o México mostrasse que era mais que uma país subdesenvolvido economicamente dentro dos termos colocados pelo capitalismo e que possuía muito mais a mostrar do que somente a massa miserável e desprovida de assistência que se acumulam aos montes nas periferias do mundo segundo os termos do Estado Moderno organizado para efetivar os interesses da elite econômica.
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Assim, enquanto morrem anonimamente milhares de indigentes famintos nos guetos mais encardidos do México, o seu governo amplamente transtornado com tal situação presenteia os mexicanos com o Espetáculo dos milhares de desaparecidos e exterminados sumariamente. Em outras palavras, enquanto parte do México só manda um "We Are the Champions... no time for losers!!!" e um "Go!!! Go!!! Go!!! México!!!", os militares empolgados matam, espacam e dão sumiço. Assim, como os nazistas, facistas, as ditaduras latino-americanas entre outras pelo mundo, os mexicanos mostraram ao planeta a modernidade e neste sentido não ouso mais uma vogal sequer dado que O. Paz o faz com maestria.
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Curioso, que estes dias me estragando vendo televisão vi o "comunismo chinês", segundo apontam os grandiosos cientistas sociais e outros historiadores que prestam consulta, fazendo mais que exportar seus "sofisticadíssimos" nike's para outros mercados do mundo sob as regras de um sistema de economia capitalista, manufaturados ao custo da expropriação da mais valia e da exploração dos seus tão miseráveis trabalhadores, além é claro da produção das penúrias desses. Na alça de mira da repressão militar, desta vez, os tibetanos. Há muito sofrendo perseguição do Estado Comunista, que negocia com o mercado, Chinês, mas agora sofrendo cobertura diária, dadas as câmeras dos televisores que por lá se instalaram para cobrirem os jogos Olímpicos e o Cubo Azul. Espetáculo, com o qual a China fez a vez e vai mostrar ao mundo a modernidade. O Brasil está sedento! Mas já mostrou por hora uma prévia no PAN, espécie de modernidade dente de leite, no entanto, campeão do mundo pra matar gente grande de inveja em eficiência. Mas disso tudo já esqueceram, pois os mortos do morro são anônimos.
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Longe, é claro, de cometer qualquer anacronismo, misturando cerveja com destilado, nunca é demais lembrar que cada casco é um casco e o meu já anda vazio. To precisando de mais uma dose pra encarar este mundo furado, pois pelo menos abastecido vê-se as coisas como elas realmente são: tortas!
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Boa leitura. Agora é com o Mestre.
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PAZ, Octavio. Olímpiada e Tlatelolco. In.: O Labirinto da Solidão e Post Scriptum.
I
OLIMPÍADA E TLATELOLCO
1968 foi um ano axial: protestos, tumultos e motins em Praga, Chicago, Paris, Tóquio, Belgrado, Roma, México, Santiago... Da mesma maneira como as epidemias medievais não respeitavam nem fronteiras religiosas nem as hierarquias sociais, a rebelião juvenil anulou as classificações ideológicas. A esta espontânea universalidade do protesto corresponde uma reação não menos espontânea e universal: invariavelmente os governos atribuíram as desordens a uma conspiração do exterior. Embora os supostos e secretos inspiradores tenham sido quase os mesmo em todas as partes, em casa país misturaram-se os seus nomes de maneira diferente. Às vezes houve curiosas e involuntárias coincidências; por exemplo, tanto para o governo do México quanto para o Partido Comunista Francês, os estudantes eram movimentados por agentes de Mao e da CIA. Também foi notável a ausência ou, no caso da França, a reticência, da classe tradicionalmente considerada como revolucionária per se: o proletariado; os únicos aliados dos estudantes até agora foram os grupos marginais que a sociedade tecnológica não pode ou não quis integrar. É claro que não estamos diante de um recrudescimento da luta de classes, mas sim diante de uma revolta desses setores que, de um modo permanente ou transitório, a sociedade tecnológica colocou à margem. Os estudantes pertencem à segunda destas categorias. Além disso, são o único [201] grupo realmente internacional; todos os jovens dos países desenvolvidos são parte da subcultura juvenil internacional, produto por sua vez de uma tecnologia igualmente internacional.
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Dentre todos os setores desafetos, o estudantil é o mais inquieto e, com exceção dos negros norte-americanos, o mais exasperado. Sua exasperação não brota de condições de vida particularmente duras, mas sim do paradoxo em que consiste ser estudante: durante os longos anos que passam isolados em universidades e escolas superiores, os rapazes e moças vivem em uma situação artificial, metade como reclusos privilegiados e metade como irresponsáveis perigosos. Junte-se a isso a aglomeração extraordinária nos centros de estudo e outras circunstâncias bem conhecidas que operam como fatores de segregação: seres reais num mundo irreal. É verdade que a alienação juvenil é apenas uma das formas (e das mais benévolas ) da alienação que impõe a todos a sociedade tecnológica. Também é verdade que, devido à própria irrealidade de sua situação, habitantes de uma espécie de laboratório onde as regras da sociedade de fora não vigem totalmente, os estudantes podem refletir sobre o seu estado e, também, sobre o do mundo que os cerca. A universidade é, ao mesmo tempo, o objeto e a condição da crítica juvenil. O objeto da crítica, porque é uma instituição que segrega os jovens da vida coletiva e que assim, nesta segregação, antecipa, de certo modo, sua futura alienação; os jovens descobrem que a sociedade moderna fragmenta e separa os homens: o sistema não pode, em razão de sua própria natureza, criar uma verdadeira comunidade. A condição da crítica, porque, sem a distância que a universidade estabelece entre os jovens e a sociedade externa, não haveria possibilidade de crítica e os estudantes ingressariam imediatamente no circuito mecânico da produção e do consumo. Contradição insolúvel: se a universidade desaparecesse, desapareceria a possibilidade de crítica, isto é, daquilo cuja desaparição se deseja. A rebelião juvenil oscila entre estes dois extremos: sua crítica é real, sua ação irreal. Sua crítica atinge o alvo, mas sua ação não pode mudar a sociedade; inclusive, em alguns casos, longe [202] de atrair ou de inspirar outras classes, provoca regressões como a das eleições francesas de 1968.
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A ação dos governos, por sua parte, possui a opacidade de todos os realismos a curto prazo e que, a longo prazo, produzem os cataclismos ou as decadências. Fortalecer o staus quo é fortalecer um sistema que cresce e se estende às expensas dos homens que o alimentam: à medida que aumenta a sua realidade, aumenta a nossa irrealidade. A ataraxia, o estado de insensibilidade equânime que os estóicos acreditavam atingir pelo domínio das paixões, é distribuída a todos pela sociedade tecnológica, como uma panacéia. Não cura da desgraça que é ser homem, mas gratifica com um estupor feito de resignação satisfeita e que não exclui a atividade febril. Só que a realidade reaparece cada vez com maior fúria e freqüência: crise, violências, explosões. Ano axial, 1968 mostrou a universalidade do protesto e sua irrealidade final: ataraxia e estouro, explosão que dissipa, violência que é uma nova alienação. Se as explosões são parte do sistema, também o são as repressões e a letargia, voluntária ou forçada, que as sucede. A doença que rói nossas sociedades é constitucional e congênita, não alguma coisa que venha de fora. É uma doença que resistiu a todos os diagnósticos, tanto aos daqueles que se dizem marxistas quanto aos daqueles que se dizem herdeiros de Tocqueville. Estranho padecimento que nos condena a nos desenvolvermos e a prosperar sem cessar, para multiplicar assim as nossas contradições, inflamar as nossas chagas e exacerbar a nossa inclinação à destruição. A filosofia do progresso mostra enfim o seu verdadeiro rosto: um rosto em branco, sem feições. Agora sabemos que o reino do progresso não é deste mundo: o paraíso que nos promete está no futuro, um futuro intocável, inatingível, perpétuo. O progresso povoou a história com as maravilhas e os monstros da técnica, mas desabitou a vida dos homens. Deu-nos coisas, não mais ser.
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O sentido profundo do protesto juvenil – sem ignorar suas razões nem seus objetivos imediatos e circunstanciais – consiste em ter oposto ao fantasma implacável a realidade espontânea do agora. A irrupção do agora significa a aparição, no centro da vida contemporânea, da palavra proibida, da palavra maldita: prazer. Uma palavra não menos explosiva e não menos bonita que a palavra justiça. Quando digo prazer não penso na elaboração de um novo hedonismo, nem no regresso à antiga sabedoria sensual – embora o primeiro não seja desdenhável e o segundo seja desejável -, mas sim na revelação dessa metade obscura do homem que foi humilhada e sepultada pelas morais do progresso: esta metade que se revela nas imagens da arte e do amor. A definição do homem como um ser que trabalha deve transformar-se na do homem como um ser que deseja. Esta é a tradição que vai de Blake aos poetas surrealistas e que os jovens colhem: a tradição profética da poesia do Ocidente desde o romantismo alemão. Pela primeira vez, desde que nasceu a filosofia do progresso das ruínas do universo medieval, precisamente no seio da sociedade mais avançada e progressista do mundo, os Estados Unidos, os jovens se perguntam sobre a validez e o sentido dos princípios que fundamentaram a idade moderna. Esta pergunta não revela nem ódio à razão e à ciência, nem nostalgia do período neolítico (embora o neolítico tenha sido, segundo Lévi-Strauss e outros antropólogos, provavelmente a única época feliz que os homens conheceram). Pelo contrário, é uma pergunta que só uma sociedade tecnológica pode se fazer e de cuja resposta depende a sorte do mundo que edificamos: passado, presente e futuro, qual é o verdadeiro tempo do homem, onde está o seu reino? E, se o seu reino é o presente, como inserir o agora, por natureza explosivo e orgiástico, no tempo histórico? A sociedade moderna há de responder a estas perguntas sobre o agora – agora mesmo. A outra alternativa é perecer numa explosão suicida ou afundar-se cada vez mais no ruinoso processo atual em que a produção de bens ameaça já ser inferior à produção de desastres.
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A universalidade do protesto juvenil não impede que assuma características específicas em cada região do mundo. O movimento juvenil nos Estados Unidos e na Europa contém, conforme acabei de explicar, perguntas implícitas e não formuladas que dizem respeito aos próprios fundamentos da idade moderna e ao que, desde o século XVIII, constitui seu princípio reitor. Estas perguntas aparecem muito diluídas nos países da Europa oriental e não aparecem [204] de todo, exceto como slogans vazios, na América Latina. A razão é clara: os norte-americanos e os europeus são os únicos que realmente têm experiência completa do que é e significa o progresso. No Ocidente, os jovens se rebelam contra os mecanismos da sociedade tecnológica: contra o seu mundo tantálico de objetos que se gastam e dissipam, mal os possuímos – como se fossem uma involuntária e conclusiva confirmação do caráter ilusório que os budistas atribuem à realidade -, e contra a violência aberta ou solapada que esta sociedade exerce sobre as suas minorias e, no exterior sobre outros povos. Em compensação, nos países do Leste europeu, a luta juvenil apresenta duas notas ausentes no Ocidente: nacionalismo e democracia. Nacionalismo contra a dominação e a ingerência soviética nesses paises; democracia contra as burocracias comunistas incrustadas na vida política e econômica. É revelador que esta última apareça como a reivindicação imediata e primordial dos jovens do Leste: a democracia, esta palavra que perdeu quase todo o seu magnetismo no Ocidente. É um sintoma desolador: quaisquer que sejam as limitações da democracia ocidental (e são muitas e gravíssimas: regime burocrático de partidos, monopólios da informação, corrupção etc... ), sem liberdade de crítica e sem pluralidade de opiniões e de grupos, não há vida política. E para nós, homens modernos, vida política é sinônimo de vida racional e civilizada. Isto é verdade inclusive para nações herdeiras de altas civilizações e que, como a antiga China, não conheceram a democracia. Os jovens fanáticos que recitam o catecismo de Mão – de passagem: medíocre poeta acadêmico – cometem não só um erro estético e intelectual, mas também uma falta moral. Não se pode sacrificar o pensamento crítico nas aras do desenvolvimento econômico acelerado, da idéia revolucionária, do prestígio e da infalibilidade de um chefe ou de qualquer outro espelhismo análogo. As experiências da Rússia do México são conclusivas: sem democracia, o desenvolvimento econômico carece de sentido, embora este tenha sido gigantesco no primeiro país e muitíssimo mais modesto, mas proporcionalmente não menos apreciável, no segundo. Toda ditadura, seja de um homem ou de um partido, desemboca nas duas formas prediletas da esquizofrenia: o monólogo [205] e o mausoléu. A cidade do México e Moscou estão cheias de gente amordaçada e de monumentos à revolução.
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Os movimentos dos estudantes mexicanos mostrou semelhanças com os de outros países, tanto do Ocidente quanto da Europa Oriental. Parece-me que a afinidade maior foi com os desta última: nacionalismo, só que não contra a intervenção soviética, mas sim contra o imperialismo norte-americano; aspiração a uma reforma democrática; protesto, não contra as burocracias comunistas, mas sim contra as do Partido Revolucionário Institucional. Mas, a rebelião juvenil mexicana foi singular, como o próprio país. Não há nenhum nacionalismo duvidoso na minha observação; o México é uma nação, que dentro da civilização ocidental, ocupa uma posição excêntrica: “castelhana listrada de asteca”, dizia o poeta López Velarde; também, dentro da América Latina, sua situação histórica é única: o México vive um período pós-revolucionário, enquanto a maioria dos outros países atravessam uma etapa pré-revolucionária. Por fim, seu desenvolvimento econômico foi excepcional. Depois de um prolongado e sangrento período de violência, a Revolução Mexicana conseguiu criar instituições originais de um Estado novo. Há quarenta anos já, e principalmente nas duas últimas décadas, a economia do país fez tais progressos que os economistas e sociólogos citam o caso do México como um exemplo para os outros países subdesenvolvidos. Com efeito, as estatísticas são impressionantes, sobretudo se levarmos em conta o estado em que se encontrava a nação em 1910 e as destruições materiais e humanas que sofreu durante cerca de vinte anos de guerras civis. Como uma espécie de reconhecimento internacional da sua transformação num país moderno ou semimoderno, o México solicitou e obteve que sua capital fosse a sede dos Jogos Olímpicos em 1968. Os organizadores não só se saíram muito bem na prova, como também até acrescentaram ao programa desportivo um nota original, tendente a ressaltar o caráter pacífico e não competitivo da olimpíada mexicana: exposições de arte universal, concertos, representações teatrais e de dança, por companhias de todos os paises, um encontro internacional de poetas e outros atos da mesma índole. Mas, dentro do contexto da rebelião juvenil e da repressão [206] que a seguiu, estas celebrações pareceram gestos espetaculares com os quais se queria esconder a realidade de um país comovido e aterrado pela violência governamental. Assim, no momento em que o governo obtinha o reconhecimento internacional de quarenta anos de estabilidade política e de progresso econômico, uma mancha de sangue dissipava o otimismo oficial e provocava em todos os espíritos uma dúvida sobre o sentido desse progresso.
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O movimento estudantil principiou como uma briga de rua entre bandos rivais de adolescentes. A brutalidade policial uniu os rapazes. Depois, à medida que aumentavam os rigores da repressão e crescia a hostilidade da imprensa, do rádio e da televisão, em sua quase-totalidade entregues ao governo, o movimento se robusteceu e adquiriu consciência de si. No decorrer de algumas semanas apareceu claramente que os estudantes, sem se terem proposto a isto expressamente, eram os porta-vozes do povo. Ressalto: não os porta-vozes desta ou daquela classe, mas sim da consciência geral. Desde o começo, tentou-se isolar o movimento, estendendo um cordão sanitário que o isolasse e impedisse o contágio ideológico. Os dirigentes e funcionários dos sindicatos operários apressaram-se em condenar, em termos ameaçadores, os estudantes; o mesmo fizeram embora com menos violência, os partidos políticos da esquerda e da direita oficiais. Não obstante a mobilização de todos estes meios de propaganda e de coação moral, para não falar da violência física da polícia e do exército, o povo engrossou espontaneamente as manifestações juvenis e uma delas, a célebre “manifestação silenciosa”, agrupou cerca de quatrocentras mil pessoas, uma coisa nunca vista no México.
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Diferentemente dos estudantes franceses em maio desse mesmo ano, os mexicanos não propunham uma mudança violenta e revolucionária da sociedade, nem seu programa tinha o radicalismo de muitos grupos jovens alemães e norte-americanos. Também não surgiu a tonalidade orgiástica e para-religiosa dos “hippies”. O movimento foi reformista e democrático, apesar de alguns de seus dirigentes pertencerem à extrema esquerda. Uma manobra tática? Parece-nos mais sensato atribuir esta ponderação à natureza das circunstâncias e ao peso da realidade objetiva: nem a têmpera [207] do povo mexicano é revolucionária nem o são as condições históricas do país. Ninguém quer uma revolução, mas sim uma reforma: acabar com o regime de exceção iniciado pelo Partido Nacional Revolucionário há quarenta anos. As petições dos estudantes, além disso, foram realmente moderadas: a revogação de um artigo do Código Penal, para todos os efeitos inconstitucional e que contém esta afronta aos direitos humanos que se chama “delito de opinião”; a liberdade de vários presos políticos; a destituição do chefe de polícia etc... Todas estas petições se resumiram numa palavra que foi o eixo do movimento e o segredo do seu poder instantâneo de sedução sobre a consciência popular: democratização. Uma vez ou outra os rapazes pediram “o diálogo público entre o governo e os estudantes”, prelúdio do diálogo entre o povo e as autoridades. Esta demanda remontava à que fizéramos um grupo de escritores de 1958, diante de distúrbios semelhantes, embora de menor amplitude – distúrbios que anunciavam, conforme então advertimos o governo, os que se produziriam dez anos depois.
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A atitude dos estudantes dava ao governo a possibilidade de endireitar sua política, sem se desfigurar. Bastaria ouvir o que o povo dizia por meio de petições juvenis; ninguém esperava uma mudança radical, mas sim uma flexibilidade maior e uma volta à tradição da Revolução Mexicana, que nunca fora dogmática, mas sim muito sensível às mudanças do ânimo popular. Ter-se-ia rompido assim o cárcere de palavras e conceitos em que o governo se fechou, todas essas fórmulas em que ninguém mais acredita e que estão condensadas nesta grotesca expressão com que a família oficial designa o partido único: o Instituto Revolucionário. Libertando-se do seu cárcere de palavras, o governo teria podido forçar o outro cárcere, mais real, que envolve e paralisa: o dos negócios e interesses dos banqueiros e financistas. Restabelecer a comunicação com o povo teria significado reaver a autoridade e a liberdade para dialogar com a direita, com a esquerda – e com os Estados Unidos. Com grande clareza e concisão, uma das inteligências mais agudas e honradas do México, Daniel Cosío Villegas, apontava o que na sua opinião – e é preciso acrescentar: na da [208] maioria dos mexicanos pensantes – era “o único remédio: tornar realmente pública a vida pública”. O governo preferiu apelar alternadamente para a força física e para a retórica “revolucionário-institucional”. Estas vacilações eram provavelmente o reflexo de uma luta entre os “técnicos”, desejosos de salvar o pouco que ainda restava de vivo da herança revolucionária, e a burocracia política, partidária da mão firme. Mas, em nenhum momento, observou-se o desejo de “tornar pública a vida pública” e abrir o diálogo com as pessoas. As autoridades, na verdade, propuseram a negociação, mas entre bastidores; as conversações abortaram porque estudantes se negaram a aceitar este procedimento imoral.
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No final de setembro, o exército ocupou a universidade e o Instituto Politécnico. Diante da reprovação que esta medida provocou, as tropas desalojaram os locais das duas instituições. Respirou-se. Esperançosos, os estudantes fizeram uma reunião (não uma manifestação) na Praça de Tlatelolco, em 2 de outubro. No momento em que os presentes, concluído o encontro, dispunham-se a abandonar o local, a praça foi cercada pelo exército e começou a matança. Algumas horas depois, fez-se o levantamento do campo. Quantos morreram? No México, nenhum jornal se atreveu a publicar as cifras. Darei aqui a que o jornal inglês The Guardian, depois de uma pesquisa cuidadosa, considera como a mais provável: 325 mortos. Os feridos devem ter sido milhares, assim como as pessoas presas
[1]. Em 2 de outubro de 1968 terminou o movimento estudantil. Também terminou uma época da história do México.
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Embora as revoltas estudantis sejam um fenômeno mundial, manifestam-se com maior virulência nas sociedades mais adiantadas. Assim, pois, pode-se dizer que o movimento estudantil e a celebração da Olimpíada no México foram fatos complementares: os dois eram signos do relativo desenvolvimento do país. O discordante, o anômalo e o imprevisível foi a atitude governamental.
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[209]Como explicá-la? Por um lado, nem as petições dos estudantes colocavam o regime em perigo, nem este enfrentava uma situação revolucionária; por outro, nenhum ato de nenhum governo – nem mesmo o da França, este sim ameaçado por uma onda revolucionária – teve a ferocidade (não há outra palavra) da repressão mexicana. A imprensa mundial, apesar da ração diária de iniqüidades que contêm suas páginas, sentiu-se levemente escandalizada. Uma conhecida revista norte-americana, horrorizada mas pudica, disse que quanto ao México, era um caso típico de “overrreaction”, um sintoma da “esclerose do regime mexicano”. Curioso understatement... Uma reação exagerada ou excessiva delata, em qualquer organismo vivo, medo e insegurança; e a esclerose não é só signo de velhice, mas também de incapacidade de mudança. O regime mostrou que não podia nem queria fazer um exame de consciência; ora, sem crítica e, sobretudo, sem autocrítica, não há possibilidade de mudança. Esta fraqueza mental e moral conduziu-o à violência física. Como certos neuróticos que, ao enfrentarem situações novas e difíceis, retrocedem, passam do medo à cólera, cometem ações insensatas e assim regressam a condutas instintivas, infantis ou animais, o governo regressou a períodos anteriores da história do México: agressão é sinônimo de regressão. Foi uma repetição instintiva que assumiu a forma de um ritual de expiação; as correspondências com o passado mexicano, principalmente com o mundo asteca, são fascinantes, surpreendentes e repelentes. A matança de Tlatelolco nos revela que um passado que acreditávamos enterrado está vivo e irrompe entre nós. Cada vez que aparece em público, apresenta-se mascarado e armado; não sabemos que é, exceto que é destruição e vingança. É um passado que não soubemos ou não pudemos reconhecer, nomear, desmascarar. Mas, antes de tocar neste tema – que é o tema central e secreto da nossa história – devo descrever, nas suas grandes linhas, o desenvolvimento do México moderno, este desenvolvimento paradoxal em que a simultaneidade dos elementos contraditórios se condensa nestes dois nomes: Olimpíada e Tlatelolco.
[1] Ainda há 200 estudantes presos, vários professores universitários e José Revueltas, um dos melhores escritores da minha geração e um dos homens mais puros do México.

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